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Recentemente tive de me confrontar com uma geração mais nova sobre o problema da inexorável aproximação do “sul” e dos paradoxos da existência abundante de água de difícil uso – por acaso, do Alqueva. Como exemplo, no escritório, tinha esboços de esquemas intuitivos para amenizar o desconforto de umas casas nas planícies alentejanas que especialistas mecânicos desdenharam por poderem ser focos de salmonelas contem­porâneas e serem capazes de promover conforto mas abaixo de “débitos” oficiais. Um arquitecto estagiário da escola de Évora chamou-me a atenção e formulou o paralelismo com complexos construídos nesse mesmo Alentejo, de raiz persa, e que promoviam fresco a essas estruturas há séculos, a custo zero e rija saúde alentejana. A curiosidade longínqua por esse povo engenhoso promoveu uma visita à Pérsia, a estes locais antigos e fantásticos, remotos, por vezes duros, sempre de uma beleza e raciona­lidade sem descrição e com uma população indígena ou nómada de calor humano inigualável; lugares onde, nos sopés das montanhas, se pressentem os jardins de fresco da Andaluzia ou da Índia, ruas misteriosas e casas fantásticas com forra de “capoto” natural à volta de pátios com dependên­cias de Verão e de Inverno, por mais modestas que sejam e com um uso muito apurado da água. Isto, paredes meias com países onde a presença da cultura dos povos das sanduíches fartas e rápidas tudo destrói sem se dar conta que há (boa) vida para lá dos sopros mecânicos; os prazeres da vida por que todos ambicionam obtêm-se a partir de coisas simples, e as coisas simples – como os textos curtos –, devem ser actos naturais e trabalhados de observação e inteligência. A maioria das pessoas que vive os diversos locais – mais ou menos aprazíveis, mais ou menos agrestes –, normalmente pratica estes actos sem deles se dar conta – por sobrevivência consegue-se boa qualidade de vida até com “quase nada” na beira de desertos –, porque, como dizia o ditado, a necessidade aguça o engenho. Os portugueses e outros povos da Europa sempre tiveram uma cultura gastronómica de carácter sazonal e própria das diversas regiões e “ruralidades”; na vizi-nhança destas regiões desenvolveram-se núcleos habitacionais de carácter distinto, consoante as geografias e climas – de que resultam construções com forte sentido de protecção, senso comum e inteligência, fonte de con­forto muitas vezes dentro de constrangimentos materiais. Talvez se possa induzir que às regiões mais apegadas ao solo correspondam arquitecturas vernaculares mais caracterizadas ou outras mais ricas onde se fazem notar também as influências de outras culturas que tiveram de usar a perspicácia para combater as adversidades ou aproveitar as amenidades naturais. Hoje, a nossa cultura gastronómica está gradualmente a ser substituída por sistemas de comida rápida, um pouco à semelhança do sistema de trocas no comércio – quiçá importada de um “novo” mundo muitas vezes sem raízes –, e onde se não notam, nem os tempos e cuidados de preparação nem, muito menos, os simples sabores e aromas das estações. Quando era estudante tinha, de vez em quando, em casa, outros da minha idade que negociavam “futuros”, i. é, o preço da colheita do café, dali a dois anos, independentemente de chuvas ou secas; da mesma forma, hoje, o conforto ambiental de edifícios é tratado, não numa lógica de protecção, mas numa lógica de mercado, de simples carga mecânica a debitar kWh e onde se não nota um esforço em usar o senso comum dos potenciais da inércia, do que se pode retirar da “adversidade” ou da amenidade. Em vez disso, propõem-se complexos sistemas mecânicos que debitam conforto interior imediato – só enquanto funcionam –, induzindo gastos energéticos consideráveis dentro de lombrigas gigantescas que só ao “diabo” lembrariam – mas talvez sejamos todos parte “diabo” – e sabor a nada, quando estanques.
     E tudo se passa neste país do sul da Europa, sempre tão inocente­mente atraído pelas quimeras de outras latitudes europeias, que se esquece da sua riqueza singela e que tem exemplos construídos e vividos de extrema inteligência, recebidos de nós próprios e dos persas e de outras culturas – onde hoje o conceito de “sul” está cada vez mais presente –, riqueza que os desenraizados burocratas e simpáticos consultores de tabelas tomam por obsoleta, sem um cuidado de aprofundamento e ajuste à nossa realidade e tempo. Muito por causa de diligentes ou convenientes “salmonelas”, deste século bastante imediato e plástico, talvez tenha tido origem um Decreto-Lei conjunto dos Ministérios da Energia e do Am­biente, RSECE (Regulamento dos Sistemas Energéticos de Climatização de Edifícios), D.L. 79/2006 ligado aos D.L. 78 e 80 de 2006, bastante generoso nas intenções de conforto ambiental, mas focado na ambição de providenciar infinita metragem cúbica de ar; talvez fosse mais expedito – tornando menos presentes as mordomias mecânicas –, o controlo do movimento do ar, da humidade relativa e dos níveis de CO e CO2 em ambientes interiores – mormente de trabalho –, usando-se a passividade material e formal que os sítios, os objectos e a energia providenciam, coisas como ventilações naturais cruzadas, frio ou calor passivo, sem a demagogia do contemporâneo “sustentável” e “domotizado” que desculpa e culpa tudo. Para que de novo e de forma mais simples possamos, “em conforto”, escrever e fazer contas, descansar, saborear sopas, açordas, assados, verduras, frutas e outros comeres maduros e nossos, com tempo e memória que não se esquecem no palato como se esquecem os imediatos, imensos e tão iguais produtos de cores vivas anunciados pelos enormes
cartazes de rua de comida rápida.|


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